terça-feira, 13 de novembro de 2018

Montesquieu e a liberdade política do cidadão

Primeiramente, a liberdade da constituição não implica na liberdade do cidadão, nem a liberdade do cidadão implica por si só na liberdade da constituição. Enquanto a primeira requer uma divisão dos três poderes – o executivo, o legislativo e o judiciário – o segundo está ligado à segurança. A segurança de não sofrer violência de seus pares, de não ser perseguido, de não ver sob ameaça as suas crenças, a sua tranquilidade, ou aos seus costumes.

Em se tratando da Justiça, a segurança do cidadão corre perigo se os meios que a mesma se utiliza são pouco confiáveis, como é o caso de bastar o testemunho de um acusador para que o acusado seja condenado. Para Montesquieu, parece mais justo que haja pelo menos dois testemunhos contra o mesmo acusado, pois, diante de apenas um acusador, estaria a se defender um único acusado e, na contagem dos votos a favor e contra o acusado, haveria uma situação de empate. No entanto, podemos estender essa visão de justiça de Montesquieu considerando outros fatores que não são previstos por ele. O conluio é um desses fatores. O equívoco de quem testemunha é outro.

No caso de conluio, o acusado passa de transgressor a vítima, pois fizeram um acordo para conseguir a condenação de um inocente, que normalmente não tem meios de provar a má-fé do conjunto de pessoas que o acusa. O conluio pode ser formado muito antes do primeiro acusador se apresentar, o que dificulta a descoberta da intenção de prejudicar o acusado. Se bastam os testemunhos, então, não se pode haver garantia de justiça para o acusado.

Quando alguém que testemunha com equívoco contra um acusado, seja por um mal funcionamento da memória, ou por uma interpretação equivocada do que tenha testemunhado, ou ainda por ser movido pela simples convicção baseada tão somente nas suas crenças, o acusado está em situação de insegurança, pois pode ser condenado ainda que nenhuma culpa carregue.

Outro aspecto relacionado à segurança do cidadão é a prudência para os chamados crimes contra a religião. No contexto em que fala Montesquieu, os crimes de heresia e de magia deveriam ser tratados de forma cautelosa, uma vez que seria difícil constituir uma prova concreta e provavelmente justa para esses dois crimes. Montesquieu nos relata um caso de que, com base na revelação de um bispo sobre um milagre ter sido impedido pela magia de um indivíduo, condenou-se à morte o indivíduo e seu filho. Em seu argumento, Montesquieu nos diz que seriam necessários diversos fenômenos interligados para que tal acusação pudesse ser justa: em primeiro lugar, que revelações espirituais fossem comuns; depois, que o bispo em questão tivesse recebido uma; em seguida, que um milagre estivesse em vias de ser realizado; depois, que a magia tivesse o poder de impedir um milagre; seguido de que a magia tivesse sido de fato usada para malograr o tal milagre; e, por fim, que o indivíduo acusado tivesse realmente poderes mágicos.

No mais, Montesquieu recomenda que, para evitar diversas manifestações tiranas, é preciso que a república se abstenha de punir crimes contra a religião, exceto que os mesmos recaiam em outra classe de crimes, a saber, os crimes contra os bons costumes, ou contra a tranquilidade, ou contra a segurança do cidadão.

Assassinar uma criança em um ritual satânico é com certeza um crime contra a religião cristã, mas é para além disso um crime contra a vida, portanto atinge não só a tranquilidade como aos bons costumes e à segurança dos cidadãos em geral.

Por outro lado, a ofensa ao divino é um problema entre o ofensor e a divindade, não podendo ser cuidada pela república. Ainda assim é preciso estar atento para não fomentar a vingança pela divindade. Isto é, aqueles que buscam punir o ofensor da divindade, como se isso não representasse por si só uma contradição com a crença na divindade, tornando-a um ser inócuo e incapaz defender-se a si mesmo.

Quando se trata da tranquilidade do cidadão, uma vez transgredida, Montesquieu afirma que a punição deva ter relação com a natureza da coisa afetada. Assim as penas devem ser de prisão, exílio, correções e outras penas que sejam capazes de reorientar o que ele chama de espíritos inquietos, obrigando-os a entrarem na ordem estabelecida. Quando ele fala em restringir essa classe de crime apenas aos atos que perturbam a ordem e não atingem à segurança simultaneamente está se referindo aos atos que, apesar de afetarem a tranquilidade não oferecem risco para a segurança. No caso de um bêbado que faça alarde pelas ruas, estaria apenas ofendendo à tranquilidade, mas, se este ameaça jogar pedras nas demais pessoas, este passaria para a quarta classe de crimes, que são os crimes contra a segurança.

Ele chama as penas aos crimes contra a segurança de suplícios. Diz ele que essas penas têm inspiração da própria natureza da coisa, e exemplifica com a pena de morte aplicada a um assassino ou a alguém que tenha tentado tirar a vida de outro. Em seu argumento para justificar as penas físicas, os suplícios, ou a tortura em linguagem aberta, Montesquieu diz que, nos crimes contra o patrimônio, o ideal seria a perda do patrimônio em igual monta, mas, como os que praticam tais crimes em geral são os desprovidos de patrimônio, a pena corporal pode ser substituta da pena pecuniária. Depois de afirmar que os castigos físicos estão justificados, ele completa que teria extraído tais argumentos da própria natureza e que tudo o que falou é extremamente favorável à liberdade do cidadão.

Admirador das monarquias moderadas, Montesquieu não se absteve de revelar essa admiração e de narrar as adequações ao que chama de crime de lesa-majestade e dos perigos que trazem a não explicitação do que seria esse crime. Na ausência de uma definição, ou de uma listagem completa e clara, Montesquieu acredita que há o risco de se incorrer em tiranias de toda a sorte. Se nada é dito sobre esse crime a não ser que sua pena é a pena capital, poder-se-ia utilizá-lo como pretexto para eliminar toda e qualquer oposição real ou suposta.

Partidário dos exemplos, ele nos informa de um caso em que um súdito sonha com um ato de revolta contra seu soberano e este, tendo conhecimento do sonho, concluiu que o mesmo só poderia ter sonhado se tivesse durante o dia pensado sobre aquilo. Então, o soberano decidiu aplicar-lhe a pena de morte. Montesquieu neste ponto avisa que, mesmo que o súdito tenha pensado sobre o assunto, apenas as ações externas é que podem ser alcançadas pela lei. Os pensamentos, e até mesmo as palavras não podem ser usadas para condenar quem quer que seja e principalmente em se tratando de pena de morte.

Se o pensamento ou mesmo os sonhos pudessem ser atingidos pela lei, todos os cidadãos estariam sob eterno perigo de se verem diante da tirania, perdendo até mesmo a liberdade de pensar. E até mesmo o soberano, em alguns casos, como o relatado por Montesquieu: uma lei da Inglaterra, promulgada no reinado de Henrique VIII, condenava à morte quem predissesse a morte do rei. A consequência de tal lei foi que, adoecendo o rei, nenhum médico teve coragem de avisar-lhe do perigo de morte que se apresentava. Caso o médico procedesse como deveria, isto é, dando o correto diagnóstico para o rei, provavelmente, o médico sofreria a pena capital.

Por isso, para Montesquieu é fundamental que as palavras somente possam ser tratadas como crime caso estejam ligadas à ação. Palavras por si só não constituem um crime, mas a ação ligada a elas pode configurar-se um crime.

Na mesma linha, um escrito que ataque a honra de um monarca não deve atingi-la, pois está o monarca, na visão de Montesquieu, muito acima do que lhe tenta ofender. Mas, caso esta ofensa se dirija a um aristocrata, esta o atravessa de um lado a outro, para usar um expressão daquele pensador. Mesmo assim, somente ligada à ação pode a palavra passar a ser crime.

Nos crimes contra pudor, é a ação externa que deve mais uma vez ser punida. Ainda que os pensamentos possam ser reprováveis do ponto de vista da ética, eles não podem ser considerados puníveis, pois estão fora do alcance das leis.

Se por um lado se pune os crimes contra o pudor, porque os mesmos atentam contra a tranquilidade e a segurança do cidadão, por outro lado, quando, para burlar a lei romana que proibia aplicar a pena de morte para moças não núbeis, Tibério mandava o carrasco violentar tais moças antes de enviá-las ao suplício, e nos vemos diante da barbárie que nem sequer se pode adjetivar.

Mas os exemplos de despotismo dados por Montesquieu não se restringem a gregos e romanos. Os hebreus e seu livro de Deuteronômio são considerados por ele uma porta aberta para todos os tipos de crimes. Inclusive incentivando a vingança.

A vingança por si só é uma coisa desprezível quando comparada à justiça. Mas, a vingança continuada, que não se acaba na pessoa do ofensor, mas se estende sobre a sua descendência, enfraquece as repúblicas. Montesquieu compara gregos e romanos neste quesito, relatando que os romanos souberam melhor tratar o assunto, evitando a continuidade da vingança, o que consumiria as suas repúblicas.

Outra coisa que demonstra a fraqueza de uma república é o uso de espiões. Se são necessários espiões para evitar a conspiração, é porque já não se tem força para evitá-las. Isso é típico de governos ilegítimos ou despóticos que sabem que a qualquer momento pode-se abater sobre ele uma conspiração. Montesquieu afirma que se deve governar pelo exemplo. Ao monarca, diz ele, cabe perdoar, punir, mas nunca insultar seus súditos.

Por fim, mas não necessariamente menos importante, ou em acordo com a ordem dos tópicos estabelecida em “O Espírito das Leis”, Montesquieu nos fala das calúnias. Se alguém tem provas de um ilícito cometido por outro, faz uma denúncia formal diante dos magistrados e não de outra forma. Se procedem de outra forma é porque não visam ao bem público e temem que a lei seja posta entre eles e o acusado. O seu ensinamento é que, para os que assim agem, a menor pena que podemos aplicar-lhes é o total e solene descrédito.



Espero que tenha sido útil essa leitura. 

Até breve!

***

Por Renata Oliveira
Editado por Marcos Pinnto.

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